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Saiba mais das criações e costuras de Dona Alice!

Alice cursou Corte e Costura antes do casamento. Foi assim que preparou seu enxoval para se casar com Demétrio. Sempre que viajava a Porto Alegre, no centro da capital, dirigia-se à Galeria Chaves, descia a escadaria de acesso à rua José Montaury, e na banca à direita, encontrava revistas e jornais do Brasil e da Europa. Aproveitava para comprar o Burda, revista estrangeira com modelos de roupas, e revistinhas para a filha se acalmar, pois aguardava impacientemente nas salas de espera das consultas.

As memórias de Marilice ficam vivas ao lembrar-se de como a mãe costurava as peças. Tudo imaginado e desenhado à lápis em papel de embrulho, o kraft, marcado com giz no tecido, cortado com enorme tesoura, alinhavado, experimentado muitas vezes e depois a costura definitiva feita na sua máquina de costura Singer. Ela fazia os arremates finais com pontos em cruz ou os pontos invisíveis. Era um perfeito acabamento.

Cada peça feita fora novo desafio. O estilo clássico alemão era adaptado na modelagem para o corpo de cada um. Sua criação tinha estética. Devia ter praticidade, beleza, combinação de cores e simplicidade no corte. Tudo experimentado no corpo da dona futura: os moldes das partes da roupa, com costuras feitas com alfinetes, os alinhavos tantas vezes conforme sua exigência logo após o corte. Novos alinhavos agora no tecido cortado.

Impossível esquecer as muitas vezes que foi preciso experimentar e tantas outras que desmanchou. Marilice ficou horas de pé sobre a mesa, enquanto a mãe marcou seu vestido de linho amarelo claro, godê – a novidade, com régua de madeira e alfinetes de centímetro em centímetro. A mocinha ficava furiosa por perder a tarde. A mãe fazia roupas novas para usar no Natal. Foi com este vestido que tirou foto em frente ao pinheiro da sala de estar. Tinha 13 anos. Usava o primeiro sapato com saltinho, pois recebeu sua autorização quando foi comprar na Loja Battisti, que sempre trazia as novidades da cidade!

Não havia compra de peças prontas não existia na escala de hoje. Dizia-se brincando que nas mãos da estilista, um lençol colorido virava vestido, que reformado era saia ou camisa, que ia se transformando até ser alguma peça de roupa para os netos. Os retalhos eram aproveitados em detalhes em outras peças: barras de toalhas de cozinha, sacolas, panos para tirar pó ao final. A sustentabilidade e a economia familiar sempre presentes.

Alice ficava compulsivamente desmanchando e refazendo enquanto dizia: tem que estar perfeito!

Suas roupas se tornaram minhas preferidas, diz a filha. Possuem valor. É só compará-las com as roupas compradas atualmente. O seu afeto e prazer, seja ao acertar, seja ao terminar a peça, que demonstrava enquanto as produzia, estampavam em seu sorriso feliz com a realização. Tudo continua presente e se reflete naquela peça que me olha sempre que abro o guarda-roupas. É quando Alice me acompanha.

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corações
Marilice Costi é escritora, poeta, contista. Especialista em Arteterapia e Capacitada em Neuropsicologia da Arte, é graduada em Arquitetura e mestre em Arquitetura pela UFRGS. Publicações: livros e artigos. Foi editora da revista O Cuidador.
 
Nos COMENTÁRIOS abaixo, deixe sua opinião. Lembre-se de enviar a outros pais, professores e outros cuidadores. Agradeço.

18 respostas

  1. A minha mãe e a tia Maria também costuraram pela revista alemã. Depois, já adolescente, fui fazer o meu primeiro vestido, para o verão, com uma amiga adolescente. Era pela revista Burda, também.
    Foi uma aprendizagem, pois, quando entramos no ônibus, o motorista estava usando uma camisa com a mesma padronagem do vestido que eu usava pela primeira vez. Demos boas risadas, eu e minha amiga. Eu, meio constrangida e envergonhada.
    O vestido tinha sido cortado pelos moldes da revista BURDA, que tinha um suplemento em português pra quem não entendia o alemão, como nós, fora as adaptações nos moldes que eram imensos, das mulheres alemãs para nosso tamanho.
    Voltando ao texto, grata pelas lembranças que me trouxe. Nem preciso dizer da minha concordância com os elogios que recebeste. Mesmo assim afirmo: concordo com tudo, sobretudo com o carinho que deixaste transparecer em todo o texto.
    Boas recordações são sempre saudáveis e nos lembram de momentos amorosos de nossas vidas.
    Abração saudoso.
    Quando a gente vai se ver?

  2. Querida Marilice, adorei ler teu texto….
    Conheci a dona Alice , atenciosa e delicada, mas não sua tarefa de costurar que bem posso imaginar vestida nela no teu sensível e delicioso contar….o final tão poético me encantou. Bj grande. Um café?

  3. Deu pra sentir o cheiro do algodão sendo manuseado com carinho. A nostalgia e as imagens tão bem costuradas passaram em mim, obrigada. Grande beijo.

  4. Excelente texto! Lembrei da minha mae, de seus fazeres, das revistas Burda, os tecidos, os alinhavos, os papéis grandes e barulhentos dos moldes.
    Vestidos dela, que se transformaram em saias para mim e que hoje a minha filha usa como tesouros carregados de memórias afetivas.
    Senti o cheiro do tecido novo e escutei o som rítmico da máquina de coser…
    Marilice, obrigada por compartilhar.

  5. Linda reportagem, valorização da arte da costura, com beleza, dedicação e persistência. Um belo trabalho familiar e uma linda parceria. Parabéns, Marilice, por nos trazer este documento.

  6. Carinhosa lembrança. Essas recordações são uma espécie de “recheio” da alma. Tô lendo um livro para um encontro sobre cinema e literatura, A Hora da Estrela, da Clarice Lispector, cuja personagem é uma nordestina vinda pra São Paulo, não traz nenhuma recordação. Sua alma é vazia de sentimentos, até sua imagem no espelho se reflete com deformidades. Abraço

  7. Uma linda essa história, uma verdadeira artista/artesã! Como era bom da nossa infância essa preocupação estética / quase arte! Esse individual ‘não massificado‘ ou contrário do vestir desprovido de nexo na atualidade! Ainda tem algumas costureiras por aí! Encontro no meio do caminho e procuro sempre manter um vínculo! Grata por repartir!

  8. Amei seu conto. Quanta memória afetiva, carinho e nostalgia de um tempo que fazer era muito o que cada um tinha habilidade. Hoje tudo tão diferente, nem sabem como fazer as coisas e nem quais são suas habilidades…

  9. Nascido na zona rural, quando fui pra cidade estudar morei com a madrinha Edith. Costureira, ela tinha entre seus figurinos a revista Burda. Nos fins de semana, quando voltava pra casa, levava gibis do Tio Patinhas para os meus irmãos mais novos. Este texto, muito bem escrito, me levou de volta a esses tempos. Tempos de memória, de lembranças, de afetos. Literatura em estado puro: sonhos que nos devolvem à realidade passada. Coisa boa!

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