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O apito da fábrica sinalizara o final do expediente. Eu visitava meus pais. Ao ver que a noite se aproximava, minha mãe deu a ordem: Vá buscar teu pai. Não fico sossegada enquanto ele não chega. O “pedido” dela era assim.

Encontrei-o ao lado de fora do balcão de madeira maciça do escritório. Fechava a portinhola com trinco e ficou feliz ao me ver. Beijei-o fazendo ruído de propósito e ele me beijou delicadamente, como era seu feitio.

Seguimos juntos no pequeno corredor, descemos alguns degraus e nos aproximamos do portão de saída. O guarda noturno nos aguardava. Papai o cumprimentou com leve movimento da cabeça e lhe sorriu. Buenas, respondeu ele. E então prestou atenção nas recomendações.

– Não se esqueça de alimentar e dar água aos cães. Verifique se o contato da Brigada está ao lado do telefone. Se houver algo estranho me avise e peça a ronda.

– Sim, seu Demétrio. Não se preocupe. Durmam bem.

Papai e eu saímos pelo pequeno vão no portão de ferro por onde passavam os caminhões, cuidando para não tropeçar no cano de suporte para as chapas metálicas elevadiças. O piso de basalto polido pelo tempo era um perigo e segurei a mão de papai com mais firmeza.

– Boa noite, Seu Mesquita, bom trabalho – disse-lhe eu já ao lado de fora.

Seu Mesquita era muito querido por nossa família. Vestira-se de Papai Noel em um de nossos natais e era quem me informava do nascimento dos filhotes dos cães. Eu sentia que o carinho era mútuo.  

A caminho de casa

Papai cruzou seu olhar com o meu assim que nos afastamos do portão e falou em voz baixa: Bom homem, o Mesquita. Trabalhador, dedicado.

Quando alcançamos a calçada, observei seus movimentos de marcha. Lentos. De braços dados com o friozinho típico da região, dirigimo-nos para casa, enquanto ouvíamos o tilim-tilim das chaves no molho preso à sua cinta.

A temperatura estava agradável e a luz diáfana da estação compunha com o amarelado das folhas.

Papai notava que suas forças sumiam, cansava fácil. Não se sentia mais em condições de tocar a empresa. Preocupava-se com o futuro, com tantos problemas não compartilhados. Ninguém queria pensar nisso, a sensação era que o tempo fluiria mais rapidamente. Além disso, quem admitia as mulheres nos negócios? 

Os ciclos

Na entrada de acesso para o jardim, pedi-lhe para fazer uma foto sua em minha pequena máquina Olympus Pen. Papai não se sentia confortável, recém saíra do trabalho.

– A imagem ficará linda, assegurei e ele expressou sua permissão.

Ao definir o enquadre de sua imagem, meus olhos se umedeceram e dei clique. Um só. O rolo tinha limite, havia muitos registros a fazer e as revelações precisavam valer a pena.

Eu sentia necessidade de perpetuar cada instante, registrar sentimentos, a sensação de pertença àquele lugar, bairro que ajudara a desenvolver e onde plantara sua vida há décadas.

Neste momento em que escrevo, o tempo fez seu caminho. Mais um ciclo terminou e outro, na direção do inimaginável futuro de previsões desconhecidas e assustadoras, já deu início.

Creio que meu papai, ao dirigir seu olhar para a velha bougainvillea já sem a florada exuberante que tivera nos natais, teve a mesma sensação que hoje me assola: a de incompleto dever cumprido.

Até breve, pai. 

_______

Nota: 

Zeferino Demétrio Costi faleceu no dia 21 de abril de 1987. Eu estava grávida de meu filho caçula e enjoava. Só contei para minha mãe após a morte de papai, com receio de que, ao se preocupar conosco, eu perdesse o direito de estar com ele no hospital.

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corações
Marilice Costi é escritora, poeta, contista. Especialista em Arteterapia e Capacitada em Neuropsicologia da Arte, é graduada em Arquitetura e mestre em Arquitetura pela UFRGS. Publicações: livros e artigos. Foi editora da revista O Cuidador.
 
Nos COMENTÁRIOS abaixo, deixe sua opinião. Lembre-se de enviar a outros pais, professores e outros cuidadores. Agradeço.

21 respostas

  1. Belíssimo e pungente texto, Marilice. A história da vida, com o olhar de afeto e admiração de uma filha querida. ❤️

  2. Para muitos ele era o Seu Demétrio, assim, com maiúscula no pronome. Para mim era o Vô Demétrio. Convivi 13 anos com ele e ouso reclamar para mim o posto de neto mais próximo. Que venha a ciumeira. Domingos tediosos eram sanados na sua casa. Silencioso, nos passeios de carro com quase nenhuma palavra, sempre pelos mesmos caminhos e destinos. O carinho era sui generis, do seu jeito, sem arroubos, com a fala baixa e pouca, acolhedor. O sorriso não era largo, mas também não era raro. Saudades do aperto na bochecha e de ouvir sua voz, brincando, me chamar de capitão, e do ritual sagrado de dizer “oi, Vô” e dar-lhe um beijo na careca.

  3. A sensibilidade da descrição da tua lembrança…nos remete para dentro da cena..como se estivéssemos ao teu lado nesse recorte da tua memória.
    Grande abraço !!

  4. A qualidade do texto é o que diferencia um grande escritor. Neste caso, escritora. Com que habilidade nos insere na crônica narrada e nos faz testemunhas quase oculares dos fatos. E não acontece de graça. É muito talento e trabalho. Isto aliado a um assunto muito íntimo, lembranças muito ternas deixa tudo perfeito. Parabéns Mariice.

  5. No belo e emocionado texto, Marilice revela um flagrante da alma. Revê e revolve o “fundo do baú“, os guardados momentos de paz, sentimentos simples de amor, que ficaram impregnadas no seu exclusivo filme da vida com som (tilintar das chaves) e imagem (a planta e o portão).
    Conheci o já idoso Z.D.Costi dando trela a um jovem e entusiasmado repórter, que era eu.

  6. Texto lindo e carregado de emotividade, lembranças , amor de família, admiração e saudade. Parabéns dona Marilice por nos deixar participar e conhecer um pqnho do Sr Demétrio, seu querido e amado pai, através da leitura desses doces e inesquecíveis momentos de vida em família. Grande abraço

  7. Carissima Marilice, seus “escritos familiares” sempre me enternecem o coração. Ter participado, embora tão pouquinho, da realidade desse tempo, com suas alegrias e angústias, deixou-me significativas marcas de afeto que agora revivem lendo você. É lindo e gratificante! Seus “personagens” permanecem vivos em mim.

  8. Que linda memória poética! Que delicadeza esse texto, como o beijo do teu pai em ti. Terminamos ele com um suspiro suave, uma tristezinha, mas também cúmplices desse estado de incompletude. Que dever essencial afinal é cumprido completamente? Assim é e ainda bem que não! Parabéns querida! Amei!

    1. Obrigada, Gabriel. É para isso que escrevemos, para carregar as pessoas de afeto e dar vida à nossa memória. Muito obrigada pelo retorno.

  9. Esse era meu avô, um amor de pessoa, gostava de puxar assunto com todos que chegavam no frigorífico, no escritório.
    Falar sobre economia e o mercado compra e venda de suínos, sempre preocupado com a colocação dos produtos derivados da carne de porco.
    E, nos sábados a tarde, me convidava para ir fazer uma geral em todos os setores do frigorífico, para na 2a.feira cobrar do responsável pelo setor, o que vira de errado.
    No sábado a tarde, quando não ia no frigorífico, me convidava para irmos no mercado Zaffari, filial da Avenida Presidente Vargas, perto do Edifício Dom Guilherme, que com suas economias construira, com salas comerciais no térreo, e 12 andares, 4 apartamentos por andar, sendo dois apartamentos médios, com 3 quartos, e os outros dois com 4 quartos e sala e copa amplos, e banheiro de para uso da empregada.
    No mercado, se preocupava em recolher quilos de banha e salames da concorrência.
    Na segunda-feira, levava os produtos para verificar a quantidade de água que tinha na banha, se tinha cheiro de ranço, daí era sinal que não era bem apurado.
    Os produtos Deliciosa, eram superiores aos concorrentes, pois eram picados a faca, ao ponto que naquele tempo, o a linguiça, como o salsichão, não recebíamos farinha de carne e outras, na sua produção.
    O que diferenciava a linguiça do salsichão Deliciosa, é que o salsichão era feito com carnes nobres, como retalhos de lombo, ao contrário da linguiça.
    Esses cuidados, e outros, meu Avô Demétrio tinha , detalhista e cuidadoso em fornecer ao consumidor produtos de excelência e qualidade.

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