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Foi para conhecer a topofilia do lugar que decidi pesquisar uma ex-operária do Frigorífico Z.D. Costi, que aqui passa a ser identificada como Elisa (nome fictício).

Para chegar ao local, foi preciso seguir pelo Beco dos Costi através de pequena via de chão batido. A Vila era localizada aos fundos da casa do empresário e ao lado das edificações da fábrica.

Nesse tempo, a chaminé que marcava as horas de entrada e saída do trabalho, perdia resistência e o ruído da queda de seus tijolos despencando de seu topo vinha ocorrendo há meses e era ouvido pelos moradores, entristecendo-os mais.

A vila

A vila operária era formada de casas de madeira de tipologia similar, postas em linha até chegar perto do açude aos fundos. O acesso pelo chamado Beco dos Costi, tinha à direita a casa do fiscal da empresa e à esquerda, a casa da D. Lídia, mãe da Marlene. A casa do patrão, como chamavam, ficava na Avenida Presidente Vargas, defronte ao quartel da Brigada Militar.

A pesquisa foi de tipo qualitativa, com desenhos e entrevista, realizada na casa de Elisa. Ela morava na vila há mais de 30 anos e se preparava para sair da vila, teria que mudar-se. Elisa constituíra família, tinha filhos. Tinha baixa escolaridade, bom nível de inteligência, religiosidade e muita afetividade. Sorridente e doce no olhar, era muito comunicativa e empática.

Como ela se sentia ao ver a chaminé destruída por falta de manutenção marcava o encerramento do trabalho fabril de modo visual e sonoro? O som de queda dos tijolos surpreendia a todos em qualquer hora do dia.

Elisa realizara melhorias na casa. Construíra garagem, arrumara a fiação, fizera pintura e substituíra peças degradadas. E ainda vou arrumar a rua (de chão batido), pois quando chove faz barro, disse-me, esquecendo-se que teria que abandonar a casa, território de sua família por tanto tempo, para ser demolida. Abaixo, sua casa e o caminho pelo Beco dos Costi à avenida.

O trajeto feito milhares de vezes e o movimento do barro quando chovia são marcas constantes em seus desenhos. Muitas vezes, esse caminho recebeu cascalho para melhorar a acessibilidade nos dias de chuva. Abaixo, observa-se o caminho em curva na área aberta defronte às moradias (à esquerda da imagem).

As relações humanas e o lugar

Na vila, todos se conheciam. Muitos iam juntos à Igreja São Cristóvão e às festas religiosas, aos bailes e churrascos no clube. Ajudavam-se levando ou buscando filhos em escola.

Desde a falência da empresa, Elisa sofria pela perda dos empregos familiares (ela e o marido foram operários) e pelo silêncio.

Sinto saudade do movimento, a chaminé vem caindo, a casa da Dona Alice foi dividida ao meio, a fábrica parada… 

Elisa sente falta dos “gritos do Seu Reinaldo”, representando a figura masculina na voz de comando de atividades na fábrica.

– A esposa do empresário (Alice Sana Costi) era sempre a primeira a chegar quando alguém nascia ou morria, participava das atividades religiosas e me ouvia sempre. Com a direção da empresa (Zeferino Demétrio Costi, empresário), eu sempre conseguia transporte para hospital, dinheiro para remédios. – afirma Elisa.

Sua consciência de passado refere-se mais ao que foi bom naquele tempo, ao que considera que tinha valor e perdeu-se (Tuan, 1980). Não lembra do cheiro ruim e das moscas vindas da pocilga.

Ela demonstra abaixo o desenho da casa do empresário. O caminho é simples, limpo, apenas marcado pelo pinheiro existente no jardim, um ponto de referência pela sua imponência de árvore florestal e o solo do beco e o chão batido de argila.

Espaços permeáveis integrativos

A fábrica não era escondida como hoje são as novas indústrias com muros altos em seu entorno. Seu muro era apenas uma simples cerca de arames e moirões. Entre as casas, apenas um pequeno muro baixo, onde se podia sentar facilmente, de alvenaria limitava territórios, não impedindo qualquer comunicação. A isso se chama permeabilidade ambiental, facilitando as relações vicinais.

Havia também contenção, pois os problemas eram resolvidos no próprio núcleo, ambiente que permitia comunicação devido à proximidade de territórios e à acessibilidade.

Elisa representou figuras parentais fortes e presentes em um caminho que configura um útero. Demonstra o acolhimento recebido. Elisa já construíra nova casa, mas ainda não morava nela porque “gosta mais” da Vila (sic).

Elisa demonstra seus caminhos, as casas da vila (imagens iguais) e o muro, limite entre a vila e a empresa.

Desenho moradora e operária da fábrica. Vivia ali no momento da pesquisa e relatou-me sua tristeza.

Território continente: um patrimônio histórico perdido

Uma área como esse núcleo fabril pode ser considerada continente. Um espaço que contém, com função de continência, portanto, acolhe, decodifica, protege.

O ambiente que se estabeleceu nessa região “continha a moradia e as angústias” de seus “operários-bebês”. Inúmeras vezes D. Alice foi procurada por eles para pedirem apoio, contarem suas dificuldades, problemas com filhos, no matrimônio… Ela sempre os acolhia, ouvia, orientava, ajudava a encontrar soluções.

O desenho do porco vivo no portão da fábrica, a marca que lhe importa, e as benfeitorias na casa podem demonstrar grande esforço em manter a vida, rejeitando a falência. Ela ainda deseja a reativação da indústria.

O desenho da marca com um porco existia no portão da fábrica.Esse continente que vinha sendo modificado pouco a pouco desde a primeira concordata, pelo tempo e pelo descaso do síndico da massa falida, vinha dando um tempo para que os moradores saíssem das casas. Depois, sem cuidado algum, preparava sua demolição. Seu valor e sua importância história não eram importantes. Havia muito interesse na valorização da gleba – 22 hectares de área urbana – para arrecadar mais no leilão. E assim foi. A região foi arrematada por preço vil na segunda chamada.

Um lar existe se ali estiver o nosso self, afirma Marcus (1995;153). A relação de um continente com seu conteúdo também pode existir de um grupo contendo um indivíduo, afirma Bion, ou vice-versa (Zimermann, 1995;40).

Elisa sofria menos as suas perdas cuidando da casa, mesmo sabendo que iria embora, ela tentava perpetuar o tempo.

O que restou?

A interrelação continente-conteúdo é inerente à dimensão espacial, portanto, o tipo de implantação – a distribuição dos elementos construídos em determinado espaço – refletiu nas relações humanas.

A morfologia do conjunto fabril foi geradora de segurança. A vila foi protegida física e socialmente devido à sua implantação, distribuição de elementos arquitetônicos no espaço.

O sofrimento de Elisa pelo fechamento da fábrica e os cuidados com o que não era seu demonstraram que o lugar era topofílico. A consciência do passado foi outro elemento importante na percepção de seu amor pelo lugar ao falar do que foi bom apenas.

As relações de solidariedade e a vida comunitária no núcleo fabril configuravam patrimônio histórico ambiental e cultural, o que foi desconsiderado pelos interessados em quitar as dívidas da empresa. Isso resultou na implantação de um shopping, que, como dizem na cidade, são “sinais de progresso”.

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Referências

MARCUS, Clare Cooper. House as a mirror of self. California: Conari Press, 1995.

TUAN, Yi-fu. Topofilia. São Paulo: DIFEL, 1980.

ZIMERMANN, David E. BION: Da teoria à prática: uma leitura didática. Porto Alegre: Artes Médicas,1995.

Nota: A pesquisa que foi desenvolvida por Marilice Costi, mestre em Arquitetura, com apoio da Psic. Terezinha Becker foi publicada nos anais do VII ENCONTRO DE TEORIA E HISTÓRIA, Arquitetura Industrial, UPF, 2003, Passo Fundo.

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Marilice Costi é escritora, poeta, contista. Especialista em Arteterapia e Capacitada em Neuropsicologia da Arte, é graduada em Arquitetura e mestre em Arquitetura pela UFRGS. Publicações: livros e artigos. Foi editora da revista O Cuidador.
 
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