Mia Couto sob o olhar de Marilice Costi
Em minhas mãos, o livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Já no início, me seduz. Vida e morte, raiz e estrada, na escrita de Mia Couto viram grude e minha retina conduz neurônios a triplicarem conexões. Casa, terra, imagens tão linguagem do self.
Sigo ao interior de territórios, do coletivo à alcova, enquanto a memória se enriquece e os personagens encontram em mim uma morada, sustentação que lava o medo do abandono. O possível se esparrama através das metáforas. Poetas não vivem sem.
Mia Couto enlameia meu corpo e sou pó revolto em águas. Lama, argila, terra, o tempo de sua narrativa interpenetra arquétipos.
Disseram-me que na Idade Média fui bruxa, mulher das ervas e dos cuidados, virei tocha. Em outro século, vi mortos jogados ao Sena, abandonados em enfermarias góticas. Na Renascença, fui florentina a lutar pelas artes. Tempos depois, resulto de imigrantes italianos em busca de vida melhor. Não apenas DNA, sou vivência cultural, estudo, livros, criação, alimentos da alma. No domínio da água em solo gaúcho, nunca me senti tão meus avós. E foi com a dor que reencontrei o reino das palavras solidárias, onde a esperança empodera e a pertença veste.
O rio no descamar do útero em tempo de plantio é rio diverso daquele que faz curva atrás da casa, a cobra de vidro de Mário de Barros. Esse rio é sangue em movimento, caminho da seiva nos rios dos corpos por onde o tempo desenha em alto relevo. Sobre a minha mão esquerda, há uma borboleta violácea, que aguarda o derradeiro voo.
Precisamos de utopias. Necessárias em tempos assustadores, quem somos nós sem a palavra a iluminar pensamentos? A encontrar corpos que se despedem? Quando as palavras alimentam, a resiliência nos costura ao universal, o livre-pensar faz resistência e impede fogueiras. Acredito que, em meio ao caos, a mudança floresce e memórias são sobrevivência.
A leitura pode prover renascimento na percepção minuciosa da humanidade. Tênue linha entre o ser e o não-ser faz bordado entre a autonomia e a dependência, entre o maior cansaço e último olhar de abraço.
Mia Couto descortina verdades embrulhadas em laços familiares enlutados, em retratos e vivências com os avós – no amar e no dormir junto – na linguagem dos encontros em tempos de despedida. O autor nos conduz além e através dos véus, os mesmos véus que, atualmente, tentam encobrir o que nos torna humanos.
Marilice Costi – escritora, poeta, arquiteta e arteterapeuta
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Nota da autora: Deixe seu comentário abaixo, a Literatura compartilhada pode ser salvadora.
Uma resposta
muito bom.