Memórias de Marilice: Como tudo começou – 1/3

Para Antonio Hohlfeldt

Minha autoestima como escritora teve início a partir da orientação do professor Antonio Hohlfeldt, quando estudei Arquitetura e Urbanismo na UNISINOS. Eu lia tudo que indicava e participava das aulas com alegria. Os temas eram árduos, sociais, vivíamos na ditadura e todo cuidado era pouco. Era corrente que, entre os colegas, havia gente do DOPS. Qualquer curso que ensinasse Sociologia e Comunicação, que ensinasse aos alunos questões de terra, riqueza e miséria, que os fizesse compreender as classes sociais era fiscalizado de perto. Suas aulas me permitiram ver o mundo da qual eu fora protegida: o esquadrão da morte imperava. “Bandido bom é bandido morto” era afirmação usada para assassinar brasileiros que defendiam o retorno da democracia.

Certo dia, criei coragem para procurá-lo em sua sala. Eu escrevera um texto diferente. Não era poesia, não era um pensamento qualquer e saíra em um jorro. Entreguei-lhe as folhas datilografadas em minha Olivetti e pedi uma opinião.

Na semana seguinte, no corredor da faculdade, ao ver-me, disse: Passe depois da aula em minha sala. E eu fui, ansiosa pelo seu retorno. Conhecia suas críticas literárias dos jornais e suas aulas. Foi então que me devolveu as folhas.

– Este conto está muito bom, Marilice. Envie para um Concurso. Veja o que saiu hoje no jornal, tem um no Alegrete.

Confiante, datilografei o conto conforme o edital com redobrado cuidado para não errar ao bater nas teclas, puxei a folha, enderecei o envelope e postei no correio.

Naquele semestre, eu concentrara as seis disciplinas em dois dias. Assim, poderia atender às demandas de meus filhos. Minhas aulas terminavam pelas dez horas da noite. Então, eu seguia com os colegas ao terminal de ônibus na UNISINOS. Em Porto Alegre, descia do ônibus na praça Rui Barbosa e, a pé, andava pela avenida Voluntários até o Mercado Público, onde os ônibus da Gazômetro aguardavam. Então, eu ia para casa. Minha vida de mãe com três crianças seguiu e esqueci do concurso, envolvida em projetos e provas.

Tempos depois, chegou um carteiro. Recebi a carta registrada, assinei recebimento e vi: Prefeitura Municipal do Alegrete. Respirei profundamente, apertei o envelope contra o peito e fechei a porta com taquicardia. Deitei-me na cama e rasguei o envelope.

Meu primeiro prêmio de literatura! O conto obtivera o 1º lugar. Vibrei. Havia um prêmio em dinheiro, que viria em boa hora, eu poderia levar um acompanhante, receberia o certificado e um troféu em um evento no Alegrete. Eu não acreditava! Lia e relia o papel em mãos. Telefonei para meus pais, contei aos meus filhos e iniciei meus preparativos para viajar.

De Porto Alegre até lá foram sete horas de ônibus. Fui na companhia de meu filho, Demétrio, que foi um grande companheiro. Na rodoviária, a Secretaria Municipal da Cultura nos aguardava e nos acolheu em sua casa, onde pernoitamos. No dia seguinte, apresentou-nos a cidade.

A premiação

O evento ocorreu à noite com a presença do homenageado, o poeta Mário Quintana, os jurados, o Prefeito Antonio Dorneles Faraco, a Secretária Municipal da Cultura que não recordo o nome, demais autoridades e a comunidade alegretense, que lotaram o auditório.

Recebi um troféu de bronze das mãos do poeta, uma obra de arte de bronze. Troféu de “segurar porta”, como dizem, um diploma e o envelope com o cheque. Meu primeiro dinheiro ganho com literatura!

No dia seguinte, um almoço festivo ao redor de uma mesa farta: carnes diversas e pratos típicos da região campeira, regados à bebida e boa conversa. Sobremesas variadas, mais um tanto de prosa. Na hora do cafezinho, o tempo marcava chuva, a estrada seria longa e o motorista da prefeitura nos aguardava. Era hora de voltar.

O retorno

Demétrio e eu nos acomodamos no banco traseiro da kombi branca, padrão oficial daqueles tempos. Mário Quintana sentou-se ao meu lado e José Edil de Lima, um dos jurados, no banco da frente e a viagem teve início.

A paisagem se encheu de campos sem fim e, minutos depois, começou a chover. Meu filho acomodou-se ao meu lado, sentia enjoo e baixei um pouco a janela.

Ao sairmos dos limites da cidade, o poeta acendeu o primeiro cigarro. Dava início ao novo maço, o primeiro aberto naquela tarde. Seu isqueiro iluminava a ponta do cigarro assim que a bagana do anterior era atirada pela janela.

Os automóveis não possuíam ar-condicionado na década de 80. Quando a chuva começou, foi preciso fechar as janelas e reduzir a velocidade até que o toró passasse.

Meu filho começou a tossir, minhas narinas incharam e a rinite alérgica se apossou de nós dois. de nada adiantou o nosso desconforto, muito menos pedir ao fumante que parace. Estava difícil de respirar. José Edil pediu-lhe que parasse. O motorista nada dizia, acostumado ao fumacê político. Demétrio sofria mais que eu com a chaminé do poeta e tossia! Sem ter o que fazer com a alergia que me causava desconforto, criei coragem e, delicadamente, pedi-lhe que parasse de fumar, meu filho estava se sentindo mal e estávamos chegando.

Mário deu de ombros. O problema é de vocês! disse com desdém e o fumacê prosseguiu.

A chegada

Quando avistei Porto Alegre, que alívio! O motorista deixou o poeta no hotel em que morava e seguimos na direção da Santana. Graças a Deus, chegamos, disse ao meu filho.

Aspirar o ar puro e fresco de minha rua foi uma bênção. Sentíamos as narinas irritadas, eu respirava pela boca quando pus meus pés na calçada. José Edil, muito gentil, saiu do carro para nos despedirmos e perguntou-me se eu escrevera outros contos. Contos? Não, este foi o primeiro – respondi-lhe. Tenho muitas poesias.

– Gostaria de conhecê-las – disse-me e combinei de lhe enviar.

Quanto ao poeta, perdeu o seu glamour e cada vez que vejo ou ouço o seu nome, a memória me assalta e me lembra daquela chaminé dentro de uma kombi com as janelas fechadas em uma tarde de muita chuva.

Tudo na vida pode ter um lado bom. Leia mais aqui.

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https://marilicecosti.com.br/memorias-de-marilice-a-descoberta-2-3/

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Marilice Costi é escritora, poeta, contista. Especialista em Arteterapia e Capacitada em Neuropsicologia da Arte, é graduada em Arquitetura e mestre em Arquitetura pela UFRGS. Publicações: livros e artigos. Foi editora da revista O Cuidador.
 
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