“Pandora é a imagem da perfeição, é a isca, a tentação que carrega consigo tudo o que vai prejudicar a humanidade. A abertura da caixa com suas consequências é resultado do livre arbítrio. Ao examinarmos este mito, a primeira reação que nos vem é uma pergunta: por que Zeus colocou a esperança, uma bênção, junto com os males? Ele não abriu mão de uma vingança cruel contra Prometeu e sua criação, e ao mesmo tempo, talvez num acesso de arrependimento, demonstrou compaixão, incluindo na caixa uma alternativa para minorar as dores. Para que, apesar das frustrações, sofrimentos, mágoas, depressão, perdas, ainda nos agarremos à vida, esperando que o futuro traga menos infelicidades e mais resolução aos problemas.
Segundo a lenda, recebemos dos deuses valores e características, mas, porque somos incapazes de resistir à tentação de conquista, fomos condenados a grandes males e sofrimentos. Como humanidade, temos guerras e violência urbana, frutos exclusivos da estupidez humana, da lei de ação e reação. Sofremos também muitos infortúnios ocasionados por desastres naturais. Alguns são originários de fenômenos espontâneos, como terremotos, tornados e tsunamis, que nos afetam porque insistimos em ocupar áreas de risco. Outros, como enchentes e deslizamentos de encostas, são consequência da irresponsabilidade, ignorância e ganância dos homens. Num primeiro momento, o mundo se choca e se sensibiliza com a calamidade, pessoas manifestam sua solidariedade, governos e ONGs enviam recursos materiais e profissionais necessários para amparar as vítimas. Os meios de comunicação se aprofundam na cobertura, técnicos de diversas áreas analisam o problema, sugerem ações imediatas e preventivas, há uma mobilização intensa. Passado um tempo, poucos permanecem para o trabalho de reconstrução. A longo prazo, as doenças e a fome advindas da tragédia, a reorganização da vida local, o trauma pessoal dos sobreviventes vão carecer da atenção de cuidadores. Assim, em termos do coletivo, a esperança está metaforicamente representada pela figura do cuidador.
Até podemos escapar dessas catástrofes globais, o que provoca um abençoado alívio, no entanto ninguém está livre das desgraças individuais. Viver faz mal à saúde, e morrer é inevitável. Então, doença e morte são males previstos, e deveríamos estar preparados para enfrentá-los positivamente, embora, quando chegam e envolvem seres muito queridos, nem sempre consigamos. Talvez sejam nossas maiores penas. Outros problemas são as surpresas desagradáveis que o destino prega em nossa vida confortável, alterando a situação em setores como segurança, emprego, moradia, alimento, relacionamentos. E cabe a cada um encontrar a melhor maneira de superá-los.
Pessoas que vivem atraindo azar serão vítimas de carma ou resultado de sua energia negativa? Em geral são aquelas que estão mais atentas para o lado sombrio e o que pode dar errado, as que se apegam a seus medos e as que mais se queixam; elas se fixam nos males espalhados por Zeus sem se darem conta que ele acenou com a esperança. Ficam estagnadas no enfoque da dor, gerando um efeito cumulativo, sem perceberem que viver é estar em movimento com altos e baixos numa eterna renovação, que a vida é um baú de surpresas, não necessariamente uma caixa de Pandora, já que há tantos imprevistos bons. Por outro lado, existem pessoas para quem tudo parece dar certo, passam pela existência como se não tivessem dissabores. Com certeza, elas os têm, ninguém escapa da maldição de Pandora. Mas se valem de uma atitude positiva para encararem os percalços de frente em busca de uma solução, tornando-os fonte de crescimento e, com isso, se fortalecem para enfrentarem novos desafios. São seres cheios de esperança.
Esperança é a fé numa luz que, mesmo fraca, nos guiará e iluminará através da escuridão existente ao redor. Diferente da expectativa — que vem da lógica, da mente, e é carregada de ansiedade — a esperança é algo profundo e inexplicável que vem da alma. É a crença de que, apesar dos pesares, a vida vale ser vivida. A esperança não deve se transformar numa fé cega, no otimismo irresponsável de que tudo vai cair do céu. Afinal ela nos foi legada com os males do mundo, e requer nossas ações e nosso cuidado, já que nada se resolve por si.
É esta força humana, energia presente em nosso instinto de preservação, que nos leva a seguir adiante, a transcender as adversidades, a recordar as passagens felizes e a apostar que podemos construir um amanhã melhor.”
____O texto acima é da jornalista R. Novaes-Bueno, autora também de Os mitos gregos e o sentimento de culpa, publicado na REVISTA – O Cuidador edição 7.
Na revista impressa e em pdf aqui, você poderá ler muito mais sobre mitos e o cuidado. Baixe gratuitamente o catálogo e informe-se se ainda temos edições em estoque e em promoções.
GLOSSÁRIO
continente: o que contém, receptáculo.
plasmar: esculpir, forjar.