O texto abaixo é de Rafael Fonseca, aluno na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/PUCRS em uma das atividades na disciplina Avaliação Pós-Ocupação. quando lecionei. A proposta didática foi dar experiência aos alunos quanto às deficiências e as necessidades de acessibilidade urbana, de cuidados com os cidadãos, pois todos têm o direito à qualidade de vida e à circulação urbana.
Publicação autorizada pelo autor.
O QUE APRENDI com Carlos e Lucila
No dia 21 de setembro de 2001, às 4 horas da tarde a turma de Avaliação Pós-Ocupação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUCRS teve a oportunidade de conhecer um pouco da vida do simpático casal: Carlos e Lucila. Eles são portadores de deficiência visual e nos contaram sobre como vivem suas vidas na cidade.
Lucila perdeu a visão em um olho em decorrência de erro médico. No outro olho, ela foi perdendo a visão aos poucos, ficando em estado de cegueira aos 33 anos. Por 10 anos, ela não saía de casa. Carlos tinha glaucoma e não sabia que esta doença existia. Ele foi dormir e acordou cego. Foi no médico saber sobre a causa. Ficou muito deprimido e não queria mais viver. Tentou cometer suicídio várias vezes e nem queria mais sair de casa. Uma amiga o animou a sair de casa, levou-o a passear e à associação dos cegos, onde passou a ter um convívio com pessoas que estão/se encontravam na mesma situação.
Carlos conheceu Lucila em um baile. Eles dançaram juntos e resolveram sentar-se à mesa para tomar refrigerante. Como nenhum dos dois sabia onde era o bar, esperaram que alguém trouxesse o refrigerante até eles. A partir daí, Carlos percebeu que Lucila também era cega e ficaram amigos. Não se encontraram por um ano. Em outro baile, eles se encontraram novamente e, com o tempo, passaram a gostar um do outro. Essa união tem sido muito importante para a vida dos dois.
Anos atrás, Lucila sentiu dores muito fortes atrás do olho, que fora substituído por uma esfera de silicone. As dores aumentaram muito e no médico, descobriu que tinha câncer atrás da prótese. Teve que fazer uma cirurgia. Lucila ficou triste com o azar. Ela disse que o pensamento positivo e a vontade de ficar com o Carlos foram a metade da cura.
Eles nos passaram muitas informações úteis para um melhoramento do nível de vida da cidade. Existe uma máquina que escreve braile. Poucos elevadores têm essa escrita, dificultando o seu acesso aos edifícios (deslocado). No centro da cidade, é mais fácil para eles se orientarem que no campus da PUCRS, pois ele possui muitas entradas que dificultam a sua compreensão. Eles se orientam muito pela textura dos pisos. Eles identificam o Mercado Público da Praça XV, o Largo Glênio Peres e a Rua José Montaury. Quando as pavimentações são mudadas, eles se desorientam. Camelôs, alguns estúpidos, atrapalham a sua passagem na rua. As lixeiras no meio da calçada atrapalham muito, deveriam estar localizadas perto do meio-fio. Os orelhões não têm uma proteção na área ao redor para que eles percebam a sua presença. Os pequenos são piores, chocam-se de encontro a eles. Eles não veem providências para melhoramentos.
É impressionante a percepção aguçada que eles têm das coisas. Eles conhecem muitas lojas pelo cheiro do material de venda. Farmácia, sapataria, banca de revista têm cheiros diferentes. Sentem dificuldade ao ir no supermercado ao escolher os enlatados, muitos com embalagens iguais. Em lugares públicos, como bancos, eles não entram em fila para serem atendidos. Nas sinaleiras, eles esperam a boa vontade de alguém para auxiliá-los. Sentem dificuldade pra conseguir pessoas que possam ajudá-los. O motorista de ônibus, por exemplo, não deu atenção quando Carlos pediu quatro vezes para descer na parada da PUCRS.
Ao comprarem uma coisa, eles têm que confiar no caráter da pessoa. Usam niqueleiras para identificarem as moedas. Diferenciam algumas delas pelo seu tamanho e pela sua textura. Quando Lucila pegou a nova nota de dez reais plastificada, jogou fora pensando que não era dinheiro.
Sua casa é toda organizada. Cada coisa em seu devido lugar. Se alguém muda uma coisa de lugar, eles sabem. Conhecem as pessoas pelas vozes no telefone. Outras pelo ritmo do caminhar. Sabem que é de manhã pelo canto dos passarinhos, pelo calor do sol na janela, pelo movimento das pessoas no condomínio. Carlos conserta chuveiro, ferro elétrico e tomadas. Lucila costura e tricoteia, e Carlos a ajuda. Os dois trabalham como massagistas. Lucila trabalha em casa e Carlos também atende a domicílio.
Lucila criou seu filho sem enxergar. Muitas pessoas diziam que era muito perigoso se caísse ou batesse com a criança. Lucila carregava-o com um braço e, com o outro, protegia-o para não bater em alguma parede ou obstáculo. Na hora da comida, o bebê a ajudava trazendo a colher para a sua própria boca. Ela disse que, hoje, ele dá mais trabalho do que ajuda, ele só ajuda quando está com vontade. Eu achei isso muito feio da parte dele, tendo uma mãe tão maravilhosa.
O mais importante ensinamento que eles me deixaram é que se conhece as pessoas não pela aparência, mas sim pelo seu interior. Bonito é o que se enxerga com o coração e não com os olhos. Pareceu-me que eles, cegos, enxergam mais longe que muita gente.
Eles se apoiam um ao outro para seguirem suas vidas. A simpatia e sabedoria dos dois são impressionantes. Fazem coisas que muita gente sadia não sabe fazer. Eles dependem das outras pessoas só para tarefas impossíveis ou difíceis de executar sem enxergar tais como: ver a cor de uma roupa, atravessar uma rua, etc. Eles disseram que quanto menos dependerem dos outros, melhor. Eis outro grande ensinamento que aprendi.
Estou muito feliz por ter conhecido um pouco sobre eles. Pena que não permaneceram mais tempo, pois, no pouquinho que eles ficaram na sala de aula, absorvi conhecimentos para a vida inteira. O entendimento que eles têm da vida é fantástico, eles não se deixam abater. Suas dificuldades, segundo eles, são normais. Eles só não enxergam, mas podem fazer muitas outras coisas.
Confesso que eu os conhecia há mais ou menos um mês atrás. Eu estava na casa da minha namorada, que mora no condomínio da rua Santa Maria, o mesmo de Carlos e da Lucila. Estávamos com sua mãe e sua irmã vendo televisão de tardezinha, quando ouvimos um estouro. Era Lucila que tinha caído ao descer a escada do corredor do condomínio e batera a cabeça no poste de concreto que fica bem à frente da escada. Carlos não sabia o que estava acontecendo. Corremos todos para juntá-la e a pomos no sofá. Carlos se preocupou. Onde bateu ficou inchado, ela torceu um pouco o pé. Prontifiquei-me para levá-la no médico, mas ela não quis ir dizendo que não era nada. Minha namorada fez compressas de gaze no pé, que machucou um pouquinho. Lucila estava com vergonha de ter caído da escada e de dar trabalho para os outros (imagina…). Sua filha ligou para o marido vir. Eu fiquei esperando sua chegada para que ela não ficasse sozinha caso ocorresse alguma emergência. Fiquei muito preocupado com a saúde dela. Quando ele chegou, eu fui embora.
Carlos e Lucila conhecem as pessoas pelo tom da voz. Lucila disse na sala de aula: “Rafael está tão quietinho…” Talvez ela tenha se lembrado de mim. Eu não me apresentei como os colegas, porque lembrei que ela estava com vergonha do acidente e acredito que ela se constrangeria ao falar sobre isso para outras pessoas. Eu não queria arriscar na possibilidade de a constranger. Pena tê-los conhecido numa situação como essa. Por isso, eu os admirei em silêncio. A primeira oportunidade que eu tiver irei conversar com eles, pessoas maravilhosas. Eles têm muitas coisas a me ensinar.
Dias depois do acontecido, foi colocado corrimão na escada, que, obrigatoriamente, deveria ter.
(1) Atividade da disciplina AVALIAÇÃO PÓS-OCUPAÇÃO, Prof. Marilice Costi, FAU/PUCRS.