Memórias de Marilice: Não verás país nenhum, verás?

Túnel verde em Salvador, BA., imagem noturna.

As dúvidas

Há décadas, desloca-se a importância das necessidades básicas para a aquisição do supérfluo. Esta semana, resolvi observar melhor o lixo plástico dos sete dias. Só o plástico: iogurtes, sucos, comprimidos, ovos, pães, cereais, barrinhas, carnes. Fiquei observando aquele saco e pensei o quanto eu estava colocando no ambiente e o que eu poderia reduzir naquela quantidade absurda – um lixo só meu e que pago obrigatoriamente para poder me cuidar e me alimentar.

Minha responsabilidade, qual é?

Não vivo na fantasia saudosista de que o Brasil foi melhor, que o mundo foi melhor. Guerras e Medicina andaram sempre de braços dados com poderosos, que matavam e desenvolviam a cura e os tratamentos. Foucault abre o nosso olhar em seu livro Microfísica do Poder. Negócios movem o mundo para o bem ou para o mal.

As escolhas são realmente nossas?

Antes era a publicidade criativa a nos induzir ao consumo e hoje é um algoritmo que nos entulha de possibilidades desnecessárias e mentalmente estressantes. E eu poderia estar descansando em vez de perder tanto tempo na busca de um texto mais claro… e meu pensamento lembra do tempo perdido na busca de preço melhor, por exemplo.

A memória e as complexidades

A cada tempo, as suas complexidades. Felizmente, tenho memória. Lembrar da inflação estratosférica e o cotidiano estresse familiar com a remarcação diária de preços nos supermercados, da correria ao receber o salário. No dia seguinte, a perda seria maior. Também não me esqueço do Esquadrão da Morte, da bomba no Rio-Centro – crime que não deu certo, da “revolução de Primeiro de abril de 1964”, do sequestro de Lilian Celiberti no RS, dos prédios do DOI-CODI. Havia medo ao conviver com as pessoas. O meu medo escondido era de demonstrar meu desejo viceral de mudar o mundo, que impedia a vida social sadia e a expressão da cultura nacional. Havia desconfianças de qualquer um, incertezas quanto ao futuro, o desejo de um lugar no mundo que me fizesse feliz.

Eu era jovem e acreditava na utopia. Hoje quero reencontrá-la. Não se pode olhar o futuro sempre negro, isso adoece. No entanto, persegue-me o desânimo de meu pai com os caminhos da empresa e seus temores de ter que encerrá-la.

Confesso que anda muito difícil ver a luz no final do túnel. E ainda existe um túnel? A metáfora que pareceu clara, pois bastaria seguir o caminho e eu encontraria a luz ao sair do túnel, hoje não é mais a mesma. Há túneis que se entrelaçam, que se cruzam, que são colados uns aos outros e que nos levam a lugares inimagináveis, imprevisíveis. A mim, são assustadores.

Acreditar é por os pés na terra.

Não posso desacreditar do ser humano.

O universo de invisíveis cuidadores que conheci através da revista O Cuidador me mostraram um Brasil submerso e desconhecido, resistente e resiliente, persistente na busca de caminhos para o bem-viver de comunidades. A fé está ali, no coletivo de pessoas que fazem o bem.

O passado foi ótimo? Tínhamos como medir o quanto a vida era complexa aos nossos pais, avós? O quanto lutaram os imigrantes? Que comunicação possuíam no meio do mato em busca de sobrevivência?

Nossas ações geram consequências.

Não verás país nenhum“.

Na palestra de lançamento de um dos livros de nosso querido escritor Ignácio de Loyola Brandão, em 2007, na Jornada de Literatura em Passo Fundo, virei sua fã. A edição especial de seu livro pela Editora Global contém seu processo criativo. “Não verás país nenhum” tornou-se um de meus livros importantes, romance que pretendo reler para repensar as anotações que fiz na primeira leitura e compreender o processo narrativo do autor. Vou revisitar a distopia escrita há décadas, assim também outros livros clássicos, leia George Orwell – 1984.

Minha utopia era muito viva no século passado.

Eu desejava Direitos Humanos: acesso à saúde (não havia SUS), ao salário digno e carteira de trabalho com direitos, à educação, à moradia e ao transporte, à arte e à cultura. Foi com a Constituição Brasileira de 1988, que este legado marcou mudança. Poucos sabem de sua elaboração através de centenas de processos coletados na sociedade. A Carta Magna foi construída pelo coletivo e analisada por especialistas e olhar avançado de juristas. Tenho orgulho de ter vivido aquele momento: um tempo de esperança.

Lutava-se pelo direito às vacinas (conheci a poliomielite, a varíola, a crupe, a caxumba, o sarampo, a varicela, a rubéola… a tuberculose!). Doenças erradicadas no pais, que retornam de mãos dadas com os negacionistas da ciência, do valor da cultura e do papel do Estado. Como precisamos de funcionários públicos de Estado, cuidadores da vida, que amam o que fazem!

Muitas vezes me sinto órfã para enfrentar o mundo desconhecido e sem controle que se agiganta e domina, agride, reduz a empatia e estimula o ódio. Estamos diminuindo a nossa humanidade?

As distopias avançam. Eu continuo procurando a utopia. Abraço-me a ela na hora de dormir e acordo com o canto da minha mãe quando eu era menina e ela abria a janela: “Viva o sol, o sol da nossa Terra, vem surgindo atrás da linda serra.” – era a sua imagem de Muçum, não a minha das colinas do Planalto Médio.

Qual a sua utopia?

Comunique-se abaixo. Serei grata a você. E se a luz do fim do túnel vier de você?

Imagem Marilice Costi – Direitos autorais reservados – Túnel verde a caminho de Salvador, BA.

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corações
Marilice Costi é escritora, poeta, contista. Especialista em Arteterapia e Capacitada em Neuropsicologia da Arte, é graduada em Arquitetura e mestre em Arquitetura pela UFRGS. Publicações: livros e artigos. Foi editora da revista O Cuidador.
 
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Respostas de 8

  1. Nestes tempos bicudos, como dizia Mário Quintana, “ devemos buscar alternativas “. É o que Marilice com sua inquieta sensibilidade de poeta exprime neste texto relembrando tempos de caos, de estabilidade, de indagações e de expectativas. Não admite se render a “entopia” e, mesmo diante de túneis bifurcados, arranca das suas lembranças um “novo sol” .

  2. Bom texto. Muitas vezes questionamos se ainda cabem utopias frente ao crescimento de teorias do conflito e da dominância. Mas o sol continua a aparecer por trás da Serra.

  3. Muitas verdades, desde de pequena ouço a voz dizendo, sempre a luz no final do túnel.
    Quando leio, palavras como as tuas, será que existe mesmo essa luz? Mas lá no fundo tenho esperança que irá prevalecer. mesmo assistindo e vendo o desencanto das pessoas.

  4. Olá Marilice, teu texto está impecável, muito necessário.Importante reflexão. Parabéns, teus textos são sempre maravilhosos. Grande Abraço!!

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