Ina era nossa cozinheira. De enorme coração, ela exalava isso no amor com que cozinhava nossos alimentos. Fazia de tudo. Minha mãe supervisionava, ensinava, participava. Mas Ina era quem sentia enorme prazer em fazer, servir e comer. A comida tinha que ser gostosa e bem feita.
Fazíamos pão em casa, como muitos dos vizinhos. Não existia padaria no bairro. Eu observava tudo. A separação da farinha, os ovos, o fermento em bolinhas aguardando o tempo necessário, o sal. Depois de boa mistura, o pão ficava dormindo. E crescia e Ina supervisionava até que dizia: Deu! Com a massa de pão, ela fazia pombinhas com olhos de feijão, bonecas e muitas bolinhas para passar no açúcar em calda e encher latas para o lanche da gurizada. Fazia também bolinhas para fritar e depois as unia numa calda de mel aquecido para fazer a liga entre elas. As bolinhas com o mel eram colocadas em uma forma untada, socadas para se unirem. Depois do esfriamento, o bolo era desenformado. Era um dos preferidos de papai.
Entre nossa casa e a a de D. Lídia, o muro e a cerca viva marcavam o limite. Entre os dois, havia um corredor que não era estreito para as crianças. Lembro bem do cheiro da terra seca e do pó avermelhado que exigia muita limpeza na casa e irritava a minha mãe que torcia pelo calçamento da avenida. O pó também se avolumava entre os verdes do cipreste que circundava o muro. Entre o muro limítrofe entre os dois terrenos e e o cipreste, andávamos, minha prima-irmã Isabel e eu até chegarmos ao muro frontal. Era onde ficava o altar para nossos cerimônias religiosas: velórios e funerais de nossos insetos e passarinhos, em caixinhas de papelão. Rezávamos repetindo, em pequena escala, o ritual católico.
D. Lídia fazia pão em forno de adobe a cada semana e, muitas vezes, alcançava um deles ainda quente quando fazia uma fornada. Ela era de um capricho só! O pão vinha enrolado em uma toalha muito branca. O aroma de pão fresco dava água na boca e era muitas vezes o centro na nossa mesa de refeições. Lembro da manteiga derretendo, do sanduíche de salame com nata e mel…
Minha mãe sempre nos ensinava a gratidão, valorizava qualquer atenção, qualquer presente, qualquer abraço. E valorizava muito o carinho de D. Lídia entregando-nos um pão por cima da cerca. Ela escolhia algo que tínhamos em casa e que D. Lídia pudesse gostar, podia ser também algum quitute da Ina, colocava no mesmo prato com o pano macio e branco e nos mandava entregar. Não conseguíamos entregar por sobre o muro. Então íamos bater na sua porta da cozinha e lhe agradecer.
Até hoje, acho maravilhoso essa troca entre vizinhas. Foi uma das coisas que perdemos ao morar em cidade grande, o carinho e o afeto, a amizade acima de tudo. Por que isso se perdeu?
Era tão doce o tempo em que vizinhas compartilhavam vida!
MARILICE COSTI vem escrevendo suas memórias. Mestre em Arquitetura, Especialista em Arteterapia, escritora e editora. RAutora de livros sobre o cuidado: “As palavras e o cuidado: Arteterapia e Literatura”, “A fábula do cuidador” e “Como controlar os lobos? e vários outros de literatura, entre eles Ressurgimento, que é Prêmio Açorianos de Literatura em 2016. Foi editora da revista O Cuidador, para cuidar quem cuida (7 anos), finalista no Prêmio Brasil Criativo – SP, em 2014. Criou Cuidaqui.com. Atende em seu atelier de Arteterapia, orienta e apoia familiares cuidadores.