Minhas irmãs sabem bem desta história, pois estavam na mesma caminhonete Ford em uma de nossas idas à praia. Uma caixinha em meus pés levava Chucas, recém retirada do ninho. Chucas acordou a uns dez quilômetros de distância de nossa casa e começou a gritar. Estranhou e tinha fome. Era um filhote de pomba e suas penas ainda estavam contidas numa película. Foi assim que a descobriram.
Não sabendo o que fazer naquela hora, papai moveu a cabeça de um lado para o outro e decidiu que não voltaria para repô-la no ninho. E assim ela ficou sendo nossa!
Chucas aproveitou a praia. Passeou e fez cocô aqui e ali no apartamento e na areia. Eu me divertia com sua companhia. Minha pomba cresceu naqueles dois meses de férias e retornou conosco sem lembrar mais dos seus, mas logo se ambientou.
As aulas no Colégio Notre Dame começaram. Eu ia bem cedo para a escola e, ao voltar, soltava minha pasta na mesa de estudos e corria para a área, onde havia uma escadaria para o quintal. Eu abria a janela basculante e gritava: Chucas! E ela vinha e se debatia no vidro até que eu a ajudasse entrar. Minhas colegas de aula até hoje se lembram da pomba que eu levei à escola.
Chucas tinha esse nome devido ao topete na sua cabeça. Ficava o tempo todo a meu lado sobre a mesa enquanto eu fazia as minhas lições.
Por causa dela, eu podia me aproximar das demais vinte pombas. Ela circulava pertinho de meus pés. Eu não conseguia pegá-las, mas elas não tinham medo. Chucas sim, ficava muitas vezes nas minhas mãos e tomava água da minha boca, o que enlouquecia minha mãe, sempre cuidadosa com as doenças. Mas não adiantava dizer… eu achava aquilo o máximo.
Seu corpo se transformou e passou a arrulhar ao redor das fêmeas e assim descobrimos que Chucas era um pombo.
Eu tinha muitas coisas a fazer. Estudava piano, inglês e ainda tinha os temas de escola.
Chucas passou a ficar menor tempo comigo e fez ninho e devia ter feito família em outro pombal próximo, andava atrás de um par. Mas, depois de uns meses, suas vindas passaram a rarear muito.
Quem mais sentiu a sua falta foi meu pai. Numa tardinha, ele – que me ajudava a alimentá-la trazendo grãos de trigo – chegou cabisbaixo e, cheio de dedos, suspirando, me perguntou se eu tinha visto “a” Chucas.
Eu percebera sua maturidade. E era tão lindo de vê-lo na dança de conquista… Eu já sabia como era: o pombo persegue a pomba, arrulha alto. Ela dá voltas e voltas no meio das outras tentando escapar, voa e ele vai atrás, desce ao solo e ele vem novamente e a cerca até que ela não tem mais alternativa – acho que é quando eles se olham nos olhos! – então ele sobe sobre ela e pronto! Ela é passiva. Eu ficava com pena do que via. O peso do pombo sobre a fêmea. Mas ele abre as asas se equilibrando e é rápido ao fazerem “amor”!
Chucas e a seu par voavam juntos em nosso quintal, mas dormiam em pombal do vizinho. E ali fizeram sua casa. Eu me encantava ao ver a sua busca por gravetinhos para fazer um ninho. Certamente, os ovos estavam a caminho. Pauzinhos, fios perdidos de lã, barbante ou outros, pedacinhos de plumas, folhinhas que podem ser acomodadas com o bico. No máximo vinte e um dias e os ovos descascariam. Esse momento eu não poderia acompanhar, pois não tinha acesso a ninhos vizinhos.
Suas vindas em nosso quintal passaram a rarear muito mais. E eu crescia.
Como Chucas não tinha medo dos animais como deveria pelo instinto de sobrevivência, facilmente os gatos e os cães a rodeavam. Mas, como andava com as demais aves, em bando, eu não me preocupava tanto. Mas naquele dia, o olhar do meu pai estava diferente do comum.
Então, com o semblante triste, com uma das mãos segurando a gola dobrada do casaco atirado atrás do ombro direito – como fazia sempre ao voltar do trabalho – colocou-o na cadeira e disse:
– Viste a Chucas, Mari? Acho que os gatos a pegaram. Ela sumiu.
Sabe-se lá o que ele sabia! O que um pai é capaz de dizer para não fazer os filhos sofrerem! Eu percebi seu pesar e, sabendo que meu pombo não aparecia há muitos dias, fiquei triste também, um tanto chateada, mas não me lembro de ter chorado como fazia sempre que um bicho meu morria. E creio que os surpreendi.
Meus pais não sabiam como me contar a morte, pois a perda de qualquer bichinho era insuportável. Após a perda, eu ganhava outro.
– Mari está ficando uma mocinha, deve ter dito minha mãe, aliviada, porque aguardava meu desespero. Por isso, meu psiquiatra havia dito há décadas, que eu não era capaz de elaborar a morte. Eu passava o dia inteiro chorando sem parar. Ele não sabia que após a morte, a vida se renova? Grande ensinamento que recebi dos meus pais. Grande ensinamento para o hoje.
Chucas já tinha se despedido de mim quando decidiu ir viver com outra em outro território. Era nova fase e agora eu passaria a me interessar muito mais por animais racionais. Se é que se pode dizer que as paixões adolescentes o são. Eu me interessaria a partir de então por bichos bem mais complicados e abandonadores do que a minha pomba.
MARILICE COSTI vem escrevendo suas memórias. Mestre em Arquitetura, Especialista em Arteterapia, é autora de diversos livros: “As palavras e o cuidado: Arteterapia e Literatura”, “A fábula do cuidador” e “Como controlar os lobos? Proteção para nossos filhos com problemas mentais. Recebeu Prêmio Açorianos em 2016 com o livro Ressurgimento. Foi editora da revista O Cuidador, para cuidar quem cuida (7 anos), que foi finalista no Prêmio Brasil Criativo – SP 2014. Criou Cuidaqui.com. Atua para cuidar além de seus pacientes, os cuidadores e familiares desde 1996. Atende em seu atelier de Arteterapia.