Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração. Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade. Eduardo Galeano (1997)

Independente das experiências de cada um, há uma oração, uma das mais rezadas no mundo, que me veio na memória: o Pai Nosso, onde se pede perdão pelas nossas ofensas e por quem nos têm ofendido e com o pedido no final, “mas livrai-nos do mal, amém”. E que assim seja!

Cansada de esperar desastres (eles vêm naturalmente o tempo todo), entristeço ao ouvir que “a sociedade precisa ter menos pessoas e as epidemias vêm para isso”. Fazem parte dos ciclos? É isso mesmo?

Difícil pensar atualmente. Se pensamos em criticar, sempre há alguém com 4 pedras, pronto a atirar. Como se o meu pensamento fosse uma agressão às pessoas… Por que isso?

Quando vivemos em uma democracia, o direito de pensar, de criar, de escrever, de pintar, de discutir (dialogar sobre temas complexos e analisar conjuntamente, argumentar, embasar) devem existir. Nosso pensamento e expressão, seja qual for. É LIVRE. Está na Constituição. No entanto, o silêncio impera nas artes, sufocadas como se a expressão humana pudesse ser comandada.

Precisamos sentir e pensar, sem medo e sem juízo, sem receio e sem pastor!

Não podemos permitir que se divorcie a alma do corpo e a razão do coração.

Enquanto a economia se move na direção da liberdade dos mercados, direcionando a cultura para o sectarismo e um tipo de colonialismo, as singularidades brasileiras, ricas devido às etnias diversas, são desvalorizadas. Somos culturas que se missigenaram: todas formam nosso país. Somos multiplicidade e este é um valor!

Somos a sociedade brasileira e suas milhares de possibilidades através da cultura, que movimentam bilhões de reais, geram empregos e entregam aos brasileiros e turistas o que temos de riqueza, vinda do sentipensador. 

Enquanto parecemos estar (e estamos) em um período cultural de trevas, em artigos de RH lê-se: o futuro profissional será de quem é criativo, empático, com competências variadas, pro-ativo, organizado, flexível e com capacidade de adaptação a mudanças... Ora, se a criatividade de nossa gurizada se desenvolve na escola em aulas de artes, de música, de danças… se para criar uma startup, todo o processo criativo é direcionado a uma necessidade social, onde se desenvolve isso? Pasmem!? Na área das Humanas e das Artes, tão desvalorizadas no atual escalão governamental.

Essa é a visão pequena que se espalha através do Ministério da Educação. Pensar serve para fazer contas… não foi o que ouvi de nosso mandatário?

O ser humano é muito mais que contas… Para  saber escrever é preciso saber ler, compreender, interpretar… Como fazer isso se as artes, a  literatura, a música forem apenas um lugar comum, um padrão formal estatal? O ser humano é múltiplo, com muitas singularidades. Como padronizar o que não pode ser padronizado?

É por isso que escrevo, que sempre escrevi e pintei, para juntar os meus pedacinhos jogados por aí, como se não tivessem sentido (mas têm!).

É a arte este amálgama que junta nossos pedacinhos, que nos auxilia a compreender nosso interior, que nos integra com plenitude.

Quero sempre ser um sentipensador! Adonar-me de meus pedacinhos, tão ínfimos, tão pequenininhos, tão insignificantes neste “mundo vasto mundo de Drummond e de Raimundo.” São a riqueza que tenho.

Mesmo assim, a poesia não sai, travada que está no meio deste “vendaval noturno” (de Ressurgimento, livro, poesia, Prêmio Açorianos 2016), neste tempo de trevas.

Escrever é meu modo de resgatar a liga que me fez e faz pessoa, um modo de tirar a tampa dos vidros de tintas e colocar ao vento todas as palavras que me cuidam desde menina, com as quais cuido pessoas.

E abrir dentro e fora de mim, verdades.

Minha gratidão, Galeano!

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Marilice Costi é escritora e arteterapeuta, autora de diversos livros, dá palestras e ministra cursos e oficinas.

 

BIBLIOGRAFIA

GALEANO, Eduardo. Celebração de bodas da razão como coração. In: O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM,1997.

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Marilice Costi é escritora, poeta, contista. Especialista em Arteterapia e Capacitada em Neuropsicologia da Arte, é graduada em Arquitetura e mestre em Arquitetura pela UFRGS. Publicações: livros e artigos. Foi editora da revista O Cuidador.
 
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Respostas de 3

  1. Lindo texto, muito bem inspirado, emocionante, e critico, toca em pontos sensíveis da nossa cultura como a educação, a Arte e a criatividade. Acredito que são os alicerces para a formação do ser humano integral.

  2. Marilice.
    Alma inquieta e intransigente na defesa do livre pensar, expõe sua inconformidade contra o que considera padronização cultural que o momento histórico quer impor e contra a separação de corpore et anima.

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