Alice cursou Artes Manuais antes do casamento. Foi assim que fez seu enxoval para se casar. Eram as prendas das mulheres de época, que precisavam administrar a casa e, nesse caso, ter os talentos desenvolvidos para se sustentarem em momentos difíceis.
Administrar a casa era de competência de Alice. Sempre que viajava a Porto Alegre, dirigia-se à Galeria Chaves, descia a escadaria de acesso à rua José Montaury e, na ampla banca à direita, comprava revistas de moda para suas criações, jornais do Brasil e da Europa para o marido e gibis para as crianças.
Burda era a sua revista preferida, sempre com novidades do estrangeiro, com modelos que a encantavam. Olhava-a com prazer e dividia opiniões com a costureira, D. Délia, que sempre passava uns meses ao ano auxiliando-a em suas costuras, a mover a roda da máquina de pedal Singer e fazer ruído intermitentemente.
Tudo imaginado, a outra etapa: desenhar à lápis em papel pardo que era adquirido em rolos para empacotar os produtos da fábrica. Cortava os moldes e os prendia com alfinetes, fazia os devidos ajustes, resultando em peças unidas com alinhavos. Alice fazia ajustes para adaptar a modelagem das peças ao corpo das filhas e, quando aprovadas, os moldes eram copiados no tecido com giz branco. Com cuidados para aproveitar bem o tecido comprado em metros, usava uma tesoura enorme para o corte. Então, os alinhavos. Alinhavada, a roupa seguia para as provas em manequins vivos. As filhas precisavam ficar à sua disposição para experimentar, em um fazer e refazer. A costura final era só após as etapas serem conferidas nos detalhes. Reunidas as peças, D. Adelia fazia a costura definitiva.
Depois vinham os acabamentos à mão, os pontos perfeitos, no avesso e no direito, os arremates e os botões. O acabamento devia ser perfeito. Se algo ficasse fora de seu padrão de perfeição, Dona Alice desmanchava e fazia tudo de novo.
Cada peça era um novo desafio. As crianças cresciam como abóboras e mal terminava, já precisaria desmanchar para aumentá-las na largura ou baixar as barras.
As provas
– Mari, venha experimentar! – chamava ela.
A mocinha ficava furiosa por perder a tarde e o tempo de escrever cartas aos amigos ou ouvir os Beatles, ler.
Marilice se queixava do tempo perdido sobre a mesa do jantar. Queria brincar, mas ficava a rodar lentamente, enquanto a mãe marcava a altura da barra do vestido com a régua, definindo o local com alfinetes. As roupas deviam acompanhar o crescimento das meninas, isso era economia.
Impossível esquecer das vezes que precisou experimentar as mesmas peças e as tantas outras que a mãe teve que desmanchar. A filha crescia, mudava o corpo, engordava e a roupa ficava no cabide aguardando. Daí que quando o tempo se esgotava, não servia mais.
Sustentabilidade e o acabamento da Alice
Na década de 60, não existiam rompas prontas em escala como hoje. Nas mãos da estilista Alice, o tecido poderia ser para um vestido, depois de um tempo transformado em uma saia ou blusa e seguia se transformando até se tornar uma roupa para os netos. Inventava outras peças com os retalhos: barras de toalhas de cozinha, sacolas, panos para tirar pó. A sustentabilidade de um tempo em que o que era urgente era apenas o necessário.
Alice fazia e refazia: Isto tem que ficar perfeito! Não posso deixar a roupa com defeitos.
Suas roupas se tornaram as preferidas da caçula e até hoje possuem valor. Quando Marilice compra alguma roupa, sempre se lembra da mãe e fala das saudades das roupas bem-feitas. Momentos em que é impossível não acessar a memória. Alice tinha prazer ao criar e demonstrava a sua satisfação ao depositar a peça sobre a cama. Sentia-se feliz e realizada. Sorria para si mesma.
Marilice ainda possui peças criadas pela mãe e sente sua presença ao abrir seu guarda-roupas, a gaveta onde estão as toalhas de mesa. É a Alice nos bordados, dos novelos de lã, viva nos detalhes em crochê, nas barras com pontos perfeitos, nos retroses.
É a mãe estilista, criativa e feliz com o que fazia, que ainda a acompanha: Dona Alice.
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Saudades eternas – ALICE SANA COSTI – nasceu em 15.08.1917 e faleceu em 25.08.2013
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ASSIM FOI MEU PAI – Marilice Costi



















Respostas de 18
Obrigada dona Marilice, achei linda a história da vó Alice e sua arte de costurar. 🧵 ❤️👏😘
A minha mãe e a tia Maria também costuraram pela revista alemã. Depois, já adolescente, fui fazer o meu primeiro vestido, para o verão, com uma amiga adolescente. Era pela revista Burda, também.
Foi uma aprendizagem, pois, quando entramos no ônibus, o motorista estava usando uma camisa com a mesma padronagem do vestido que eu usava pela primeira vez. Demos boas risadas, eu e minha amiga. Eu, meio constrangida e envergonhada.
O vestido tinha sido cortado pelos moldes da revista BURDA, que tinha um suplemento em português pra quem não entendia o alemão, como nós, fora as adaptações nos moldes que eram imensos, das mulheres alemãs para nosso tamanho.
Voltando ao texto, grata pelas lembranças que me trouxe. Nem preciso dizer da minha concordância com os elogios que recebeste. Mesmo assim afirmo: concordo com tudo, sobretudo com o carinho que deixaste transparecer em todo o texto.
Boas recordações são sempre saudáveis e nos lembram de momentos amorosos de nossas vidas.
Abração saudoso.
Quando a gente vai se ver?
Lindo e Afetivo registro histórico!!!
lindo texto retratando tua história cheia de afetos, parabéns 👏👏👏
Lindas recomendações, recheadas de carinho e muito amor filial. Uma mãe muito especial, sempre muito ativa em várias áreas.
Querida Marilice, adorei ler teu texto….
Conheci a dona Alice , atenciosa e delicada, mas não sua tarefa de costurar que bem posso imaginar vestida nela no teu sensível e delicioso contar….o final tão poético me encantou. Bj grande. Um café?
Sim, vamos combinar.
Deu pra sentir o cheiro do algodão sendo manuseado com carinho. A nostalgia e as imagens tão bem costuradas passaram em mim, obrigada. Grande beijo.
Adorei o texto muito bem escrito e repleto de lembranças afetivas!
Parabéns!
Maravilhosas lembranças, um capricho só essas costuras, só fiquei aqui imaginando, um mimo. Grande abraço.
Excelente texto! Lembrei da minha mae, de seus fazeres, das revistas Burda, os tecidos, os alinhavos, os papéis grandes e barulhentos dos moldes.
Vestidos dela, que se transformaram em saias para mim e que hoje a minha filha usa como tesouros carregados de memórias afetivas.
Senti o cheiro do tecido novo e escutei o som rítmico da máquina de coser…
Marilice, obrigada por compartilhar.
Maravilhoso texto, lindas lembranças, repletas de ternura, amei!
Linda reportagem, valorização da arte da costura, com beleza, dedicação e persistência. Um belo trabalho familiar e uma linda parceria. Parabéns, Marilice, por nos trazer este documento.
Carinhosa lembrança. Essas recordações são uma espécie de “recheio” da alma. Tô lendo um livro para um encontro sobre cinema e literatura, A Hora da Estrela, da Clarice Lispector, cuja personagem é uma nordestina vinda pra São Paulo, não traz nenhuma recordação. Sua alma é vazia de sentimentos, até sua imagem no espelho se reflete com deformidades. Abraço
Uma linda essa história, uma verdadeira artista/artesã! Como era bom da nossa infância essa preocupação estética / quase arte! Esse individual ‘não massificado‘ ou contrário do vestir desprovido de nexo na atualidade! Ainda tem algumas costureiras por aí! Encontro no meio do caminho e procuro sempre manter um vínculo! Grata por repartir!
Amei seu conto. Quanta memória afetiva, carinho e nostalgia de um tempo que fazer era muito o que cada um tinha habilidade. Hoje tudo tão diferente, nem sabem como fazer as coisas e nem quais são suas habilidades…
lembrança terna e doce de uma época feliz.
Nascido na zona rural, quando fui pra cidade estudar morei com a madrinha Edith. Costureira, ela tinha entre seus figurinos a revista Burda. Nos fins de semana, quando voltava pra casa, levava gibis do Tio Patinhas para os meus irmãos mais novos. Este texto, muito bem escrito, me levou de volta a esses tempos. Tempos de memória, de lembranças, de afetos. Literatura em estado puro: sonhos que nos devolvem à realidade passada. Coisa boa!