Nada somos sem acolhimento, sem liberdade para criar. Valorização, liberdade e autoestima são fundamentais. A coragem de criar resgata a riqueza que temos dentro de nós.
Eu era adolescente e minha tia, Irmã Leonardina Sana, passava uns dias conosco. Assim como em seu trabalho utilizando o método Montessori, ela observava muito o que eu fazia. Eu gostava de lhe mostrar as minhas artes, pois ela sempre tinha algo a me dizer. Naquele ano, ela trouxera um livro sobre desenhos e, antes, disse-me: “Queres ver? Tu és uma artista… teu desenho é você, minha querida. Desenha a tua árvore.” Quando lhe entreguei o desenho,ela deu uns pitacos e foi buscar um livro: O teste do desenho como instrumento de diagnóstico da personalidade me introduziu à arteterapia, o que fui descobrir muito tempo depois.. Na folha de rosto, consta a dedicatória: “Mari, o desenho expressa e conta aos outros o que jamais diríamos por ser nosso, tão intimamente nosso. Ao lado da “Arte”, ele muito te ajudará na compreensão e conhecimento dos que contigo crescerão.” Estávamos em 1970. Minha tia orientava minha mãe nas minhas dificuldades típicas da adolescência, que se acerbavam com a minha hiperatividade, criatividade e curiosidade.
A árvore surgiu em uma folha de ofício branca, a lápis. Frondosa, ocupava toda folha. Poderíamos dividir o papel em 4 e as partes se pareceriam. A copa espelhava a imagem das raízes. Sem rama, entre os galhos, uma lua cheia, marcava o quadrante superior direito.
Minha estrutura familiar era repleta de experiências e afetos, pessoas, comidas, cuidados, tudo explicaria também as nossas raízes, escutei dela também. Pais, tios, primos, irmãos, sobrinhos e tudo que circulava ao meu redor naquela casa diariamente era de uma riqueza imensa. Minha mãe atendia:os pobres a pedirem roupas ou alimentos, os operários da fábrica a pedirem emprego, seus filhos e suas mulheres a não saberem mais o que fazer no casamento, os vendedores de livros, os que ofereciam joias… muitos estrangeiros em busca de sustento e trabalho vendiam produtos. Os padres, freiras e bispos, profissionais da APAE, pessoas da comunidade… além dos amigos de papai.
Nesse tempo de minha árvore primeva, eu tinha muito a aprender em todas as direções.
Lembro que titia afirmou que a lua era um símbolo paterno, referindo-se a quem parecia ser minha companhia preferida.
Pintei muitas árvores mais: cartões de Natal receberam araucárias, plátanos demonstrariam resistência e resiliência ao suportar a carga das videiras – o que se vê no noroeste do RS, beleza a cada estação ao mudar de cor. O plátano me representeou durante um bom tempo.
Mais adiante, num evento de Arteterapia, percebi que agora era flamboyant, esparramando-se além do lugar comum em ramas floridas, era outra fase em minha vida (fig.2).
- As revistas O Cuidador
Em muitas edições na revista O Cuidador, periódico que criei em 2008, ela está lá como metáfora do cuidador. Basta prestarmos atenção à sua forma, utilidade, à sua importância em nossa vida e perceberemos o quanto a árvore é importante para nossa sobrevivência. Ela nos dá sombra, flores e frutos, acolhe ninhos… O cuidador também: alimenta, protege, carrega, acolhe…
Segui na criação da revista O Cuidador. Na primeira capa, uma árvore oca deu início ao que viria nas 40 edições seguintes (hoje on-line). As árvores demonstravam sempre como era o andamento da revista e o quanto um cuidador precisava de cuidados. Ela demonstrou a importância do cuidado na vida de quem não tinha mais o que dar a não ser a própria vida.
A árvore era agora outro olhar sobre o coletivo (fig.3), os cuidadores em todas as esferas.
A imagem da árvore esteve na capa de muitas edições. Na edição 30 (fig. 4), utilizei um desenho feito em pastel oleoso, na década de 80. Pintei a dor. Visitei Silveira Martins no Rio Grande do Sul, onde chocara-me com a ordem do Prefeito. Os plátanos da praça principal foram abatidos, os troncos sangravam, a seiva no corte avermelhado era jogada para minha retina. O vazio que viria na morte de tantas árvores centenárias, daria lugar à nova e moderna pavimentação com lajes de basalto trazendo a modernidade ao município.
A imagem ilustrou a revista que trouxe a sustentabilidade e as moradias para pessoas com deficiências psicossociais.
Na comemoração dos cinco anos da revista O Cuidador, outra árvore na capa. A árvore oca estava com vida agora, frutificara e ganhara estrutura, liberdade e cultura estavam em seus ramos (fig.5).
- As perdas
Anos depois, perdi minha mãe. Em uma tela, usei tinta acrílica, novo quadro. Minha árvore permaneceria frondosa após a morte de um amor, após a passagem de minha mãe. A árvore novamente a fazer parte do meu autocuidado.
- O Crescimento
A revista teve que mudar de rota em 2015. Após a 40ª. edição, encerraríamos este projeto por tempo indeterminado. Com nova residência e resistência, sua nova moradia no site Sana Arte, onde poderá ser objeto de pesquisa por valores irrisórios (fig. 7).
Quando houve o vendaval em Porto Alegre no início de 2016, vê-las tombadas me fizeram chorar. Aquelas árvores me acolheram e me ensinaram em muitos momentos. E continuam, pois se eu olhar meus desenhos novamente, poderei ter novos insights. Elas também me auxiliam no trabalho de arteterapeuta.
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@Marilice Costi é especialista em Arteterapia, escritora, poetisa, criadora e editora-chefe da revista O Cuidador (2008-2015), hoje on-line. É arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura. Recebeu diversos prêmios em literatura, tem livros publicados: As palavras e o cuidado: Arteterapia e Literatura; Gatilho na Palavras, Como controlar os lobos?, A fábula do cuidador entre outros. Recebeu Prêmio Açorianos 2006 com Ressurgimento. Criou a primeira oficina de poesia de Porto Alegre em 1995. É membro da Academia Literária Feminina do RS e da AATERGS (Associação de Arteterapia do RS). Dá palestras, ministra oficinas. É mãe cuidadora.
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